#49 - aquela (ausência de) liderança
paquitas e o impacto dos valores na liderança que queremos ver no mundo.
No último fim de semana assisti ao documentário Pra Sempre Paquitas e lembrei de você. Foi na mesma semana em que a frase "Deus me livre de mulher CEO” viralizou em toda a internet, culminando no afastamento de uma das figuras mais polêmicas do mundo corporativo atual, do negócio de sucesso construído por ele1.
“Não era uma brincadeira, não era um sonho, era um negócio e quem estava na diretoria COMERCIAL da empresa? Quem estava no comando daquela máquina capital? Obviamente que a postura abusiva, assediadora, violenta, deve ser repudiada vinda de qualquer e de todos os lados, mas é superficial demais responsabilizar única e exclusivamente uma mulher e todas as suas interseccionalidades, por danos que geraram milhares e milhões em dinheiro."2
A partir da leitura desse trecho, presente no artigo da Deh Bastos, eu soube que precisaria assistir ao documentário. Quando vi o quanto as diferentes gerações de paquitas tiveram acesso a uma versão divergente da liderança da Xuxa ao longo do tempo, logo depois do episódio envolvendo a "maior escola de negócios para executivos do Brasil", fiquei pensando no quanto nós, mulheres, ainda somos encorajadas a não ocupar espaços de liderança e, nas poucas vezes em que isso acontece, como somos direcionadas a mudar a nossa personalidade para sermos aceitas.
Além de contar a história de como a eterna rainha dos baixinhos construiu um verdadeiro exército de seguidoras com o desejo pela “profissão paquita”, a série documental de cinco episódios também fala de assédio moral, exploração infantil e racismo estrutural, destacando (para olhares mais atentos) o quanto mulheres, desde meninas, são colocadas em situações de vulnerabilidade antes mesmo de entenderem ser possível lidar com isso.
E foi justamente aí que eu lembrei de você e de como a sua incapacidade de demonstrar vulnerabilidade te transformou na pessoa que você é. Engraçado que, a minha mente começou a redigir essa carta enquanto eu fazia outras coisas e, agora que sentei aqui pra escrever, quase posso ver os seus olhos azuis me encarando com uma mistura de ressentimento e curiosidade.
Sempre gostei tanto de você… desde o começo, lá naquelas primeiras entrevistas, eu te achei gente boa. A convivência logo me mostrou que você era mesmo gente boa, dentro do que você se propunha a ser.
Não sei se você sabe, mas ao longo de toda a minha trajetória profissional, só tive duas gestoras mulheres. A Dê, que me ensinou muito sobre vendas e experiência do cliente, quando, ainda muito jovem, vi minha família perder todo o nosso patrimônio e precisei trabalhar para ajudar a sustentar a casa. E depois de muitos e muitos anos sendo diretamente orientada por gestores homens, veio você. Acho que também por isso eu tenha depositado tanta fé em você. Eu amava a ideia de ter uma líder mulher me guiando para lapidar a minha própria liderança. Mas daí aconteceu o que sempre acontece quando a gente deposita muita expectativa em alguma coisa: a frustração.
Ao longo dos episódios de Pra Sempre Paquitas, muitas delas deixam claro, por meio de depoimentos marcantes e muito emocionados, o quanto a falta de posicionamento da Xuxa foi, aos poucos, quebrando o encantamento daquele sonho de ocupar o espaço mais desejado por todas as adolescentes brasileiras, especialmente entre as decádas de 90 e 2000. No caso delas, o tempo as fez entender que se acostumar com algo que violava seus valores era inaceitável. A Xuxa também mostrou isso quando compartilhou que somente o amadurecimento a trouxe o reconhecimento de que havia deixado seus valores de lado por medo de se posicionar e enfrentar a mulher que, até então, a tinha construído artisticamente.
No nosso caso, conforme o tempo passava e eu me acostumava a conviver com você, percebia que pensávamos muito diferente. Quanto mais a gente se aproximava pessoalmente, mais a gente se afastava profissionalmente - não existia convergência de valores3 entre nós.
É claro que eu não percebia isso na época; eu apostei todas as fichas na minha convicção de que você estava disposta a mudar a sua postura, o seu jeito de lidar com as pessoas, a sua forma de se defender do mundo… penso que tudo começa aí, sabe?! Desde muito cedo você foi a única mulher no meio de tantos homens que colocavam o dedo na sua cara e te diziam como e o que fazer. Você endureceu - quem não endureceria?
E ficava claro, a cada troca mais profunda sobre gestão de pessoas, o quanto você tentava fazer o seu lado humano falar mais alto - muitas vezes você conseguiu, vale destacar. Só que, por algum motivo que só você pode explicar, ele não foi uma base sólida da sua liderança gestão.
Com você eu aprendi tudo o que eu não queria ser enquanto gestora e, ao mesmo tempo, o que eu precisava saber sobre mim para ser uma boa gestora. Isso transformou a minha trajetória e impactou demais na mulher e na líder que sou hoje.
Durante muito tempo, sofri porque não te admirava. Era triste ter uma mulher forte e influente ali do meu lado e não poder contar com ela. Você nunca me deixou na mão, isso bem é verdade. Mas você também nunca me inspirou e isso é tudo que sempre busquei encontrar numa liderança.
E veja, o sentimento era (e de certa forma ainda é) conflitante, porque a autonomia que você me deu demonstrava a sua confiança profunda no meu trabalho - e eu, de fato, sentia isso. Meu coração se divide até hoje entre um sentimento profundo de gratidão e abandono, toda vez que lembro do seu rosto vermelho com lágrimas nos olhos na minha despedida. Aquele dia eu tive certeza de que foi a masculinidade tóxica, que sempre te rodeou, a grande responsável pela ausência da sua liderança.
Parafraseando o ex-CEO: "Deus me livre só ter referências masculinas de liderança!”
Mas você não se livrou e eu sinto muito por isso. Talvez você hoje, assim como a Xuxa, consiga perceber o impacto que uma (não) líder tem na trajetória das pessoas que apostam e confiam em você.
Eis aqui o grande aprendizado para você, leitor:
Eu sei que te ensinaram que um bom líder deve dar autonomia para seus liderados. Acontece que autonomia sem alinhamento de valores gera distanciamento. E esse distanciamento destrói a sua relação com as pessoas que trabalham e convivem com você, ainda que você tenha carinho ou admiração por elas. Essa carta é uma forma de te mostrar isso a partir de uma catarse pessoal, e também de fomentar que falemos mais sobre o quanto nós mulheres ainda precisamos lutar ferozmente para nos desvencilharmos de uma sociedade machista e muito pouco colaborativa. Me deixa saber como você enxerga tudo isso?
Conceito autoral de ferramenta que faz parte do MLU, meu programa de desenvolvimento de liderança. Saiba mais aqui.
Eu passei por uma situação muito semelhante. Tive uma gestora quando trabalhava em um setor que era praticamente dominado pela energia masculina e o tempo de casa dela convivendo com esse endurecimento masculino (que com certeza sentiu na própria pele), fez com que ela tivesse comportamentos e inseguranças que afetavam diretamente a sua liderança. Foi bem desafiador e a partir desse momento tive minhas primeiras crises de pânico. Mas Eu passei por uma situação muito semelhante. Tive uma gestora quando trabalhava em um setor que era praticamente dominado pela energia masculina e o tempo de casa dela convivendo com esse endurecimento masculino (que com certeza sentiu na própria pele), fez com que ela tivesse comportamentos e inseguranças que afetavam diretamente a sua liderança. Foi bem desafiador e a partir desse momento tive minhas primeiras crises de pânico.
Mas felizmente nesse mesmo lugar, tive a oportunidade de conhecer uma das líderes mais humanas de todas. Apesar do ambiente hostil, ela fez do limão uma verdadeira limonada e inspirou muitas pessoas ao seu redor pela sua forma empática de liderar. Foi ela que me fez não perder a esperança de que é possível mudar o modus operandi.
A liderança de um homem é diferente da liderança de uma mulher, e acho que só agora estamos percebendo isso, até então estávamos tentando liderar imitando eles, e não funciona assim